sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Kid Mumu além dos memes.



Cotação : 5 estrelas

Começo essa resenha em um domingo, 19/10/2014, 19:00. Para muitos isso não significa muita coisa, mas, para aqueles que foram crianças entre o fim dos anos 70 e por toda a década de 80, o dia e o horário, associadas à música tema, são referencias inequívocas : Era o dia e a hora do programa dos Trapalhões, na Globo.
 O grupo formado em 66 na Excelsior, mas, após algumas encarnações, consolidado em 74 na TV Tupi, era a tradução brasileira do consagrado humor circense pastelão, cujo o paralelo internacional mais famoso talvez sejam os Três Patetas. Cristalizado como quarteto, o grupo tinha em cada um de seus comediantes papeis bem definidos e que funcionavam à perfeição dentro do time de comédia a que se dedicavam. Para muitos, apesar de momentos solos e coletivos brilhantes, o trapalhão mais engraçado era mesmo Mussum.
“Mussum forevis : Samba, Mé e Trapalhões” (Leya, 2014) é a esperada biografia do humorista que, apesar dos 20 anos de sua morte, segue mais vivo do que nunca sobretudo pela notável apropriação de seus bordões e imagem, eternizados em vídeos compartilhados e nas famosas “memes” compartilhadas de forma viral nas redes sociais. Boa parte dos criadores que mantêm esse culto ao velho trapalhão, não teve idade suficiente para acompanhar in loco a carreira de Antônio Carlos e nem faz ideia de que ele na verdade era muito mais que um notável comediante. É em grande parte para esse público que o jornalista Juliano Barreto escreveu o livro.
O autor desvenda as origens humildes de Mussum, que, embora mais tarde associado de forma imediata à Mangueira, nasceu no Morro da Cachoeirinha, no Engenho Novo, também na Zona Norte do Rio. Filho de uma lavadeira analfabeta, nunca conheceu o pai e viveu as dificuldades inerentes à sua condição nos difíceis e preconceituosos anos 40 e 50. Apesar disso, seguiu regularmente nos estudos, dentro das possibilidades dos meninos de sua classe social, conseguindo o diploma de um curso técnico de mecânica, passaporte para um engajamento na carreira de militar, quando se alistou na Aeronáutica,
Ao mesmo tempo em que era um militar disciplinado, Mussum, nas horas de folga, começou a intensificar as suas incursões no mundo do samba, universo no qual gravitava desde de adolescente. Observando e frequentando inúmeras rodas de samba com amigos, Mussum se transformou num exímio sambista, tendo inclusive, utilizando os seus conhecimentos de mecânica, praticamente inventado um instrumento : o reco- reco.
O convívio mais intenso com os bambas do samba carioca, rendeu um dia um convite para integrar um grande grupo de passistas e ritmistas que faria audição para o mítico Carlos Machado que, apesar de não estar mais em seus áureos dias, seguia montando seus espetáculos musicais. O grupo foi aprovado e Mussum entrou para o mundo do showbizz,
A partir daí , trabalhando em grupo nas shows do veterano produtor, embora ainda na vida dupla de militar, Antônio Carlos começou não só a melhora de vida, como também a ganhar experiência de palco, desenvolvendo brincadeiras e coreografias com os colegas, que garantiam o espaço do grupo e chamava a atenção de outros artistas que passariam também a contar com os músicos em suas apresentações.
Por essa época, ele estrearia na televisão e, de quebra, ganharia o apelido que o tornou famoso. Em novembro de 1965, a Globo ainda era um pequena emissora carioca que montava sua grade de programação para fazer gente às grandes com a Tupi, a Excelsior e a TV Rio. Maurício Shermann, então já um experiente diretor, criou um programa humorístico chamado de “Bairro Feliz”. Grande Otelo era uma das estrelas da atração e teria um bloco inteiro só para si, no qual fazia um compositor que tentava em vão emplacar seus fracos sambas na escola do coração. Para compor o quadro, era necessário que houvesse a reprodução mínima da estrutura de uma escola de samba. Otelo era muito amigo de Carlos Machado e indicou o grupo, já então denominado Originais do Samba, que tocava em seus espetáculos. 
O conjunto era coadjuvante do quadro que, além de Otelo tinha também Milton Gonçalves como o diretor da tal escola de samba. Um dia, um dos atores escalados para o esquete faltou. Não havia tempo de arrumar outro e o jeito foi apelar para um dos rapazes do conjunto. Como Antônio Carlos era o mais falante, foi o escolhido. Resistiu até a última hora, mas Shermann apelou e ele, a contragosto, acabou aceitando. O programa era ao vivo, como quase tudo que se fazia na TV brasileira da época e , Otelo, invariavelmente não ensaiava, chegando em cima da hora do programa e frequentemente já calibrado. Foi assim naquela vez. Por não ter o texto decorado, o ator resolveu entrar em cena com um livro, com as suas falas cuidadosamente colocadas dentro.
O programa começou. Na hora do quadro, Otelo estranhou ter que contracenar com alguém do grupo, não sabia que o ator escalado havia faltado, mas a coisa foi se desenrolando. No meio da cena, Milton Gonçalves entra com o resto dos Originais em uma frenética batucada. Otelo se assusta e deixa o livro cair com as falas se espalhando pelo palco. Enquanto tenta catar as falas, a plateia e o resto do elenco vem abaixo de tantas risadas. Já irritado, Otelo encara Antônio Carlos e dispara : “Tá rindo de quê o...Muçum !!!”. O programa praticamente acabou. Ninguém se aguentou de tanto gargalhar (Muçum, grafado com ç mesmo, é um peixe escuro). Nascia um ícone.
Após o cancelamento de “Bairro Feliz”, o grupo seguiu de forma ainda mais intensa a carreira, tocando nos célebres programas e festivais musicais da TV Record. Os Originais do Samba foram rapidamente alçados ao posto de um dos grandes nomes do gênero no país. Assinam com a RCA e desandam a fazer shows. Mesmo com a vida de músico de vento em polpa, Mussum ainda teria pelo menos mais uma participação cômica de impacto na TV. Chico Anysio, ao remontar a clássica Escolinha do Professor Raimundo na Tupi, em 1968, buscava o aproveitamento de novos alunos. Já conhecia Mussum da experiência do “Bairro Feliz” e ao assistí-lo em um espetáculo do já decadente teatro de revista, não teve dúvidas, o chamou para trabalhar na versão televisiva do velho quadro do rádio. Foi lá, por orientação de Chico, que Mussum adotou a particular pronúncia que seria a sua marca registrada nas telas. O personagem estava pronto.
O encontro definitivo que colocaria o personagem na história, se daria pouco depois, ainda no começo dos anos 70.
Em 1960, o jovem advogado Renato Aragão fez um teste para trabalhar na então nascente TV Ceará. Sendo um fanático por Oscarito, Renato sonhava em ser como seu ídolo, um mito do cinema, mas a TV, ainda uma novidade para a maioria dos brasileiros, poderia ser um atalho interessante. Sem qualquer contato com o mundo artístico antes, ele foi aprovado e passou a bater ponto como ator e redator de humor na estação cearense.
Em 1964, após grande sucesso em sua terra natal, Aragão desembarca no Rio para trabalhar na mítica TV Tupi, no programa “A,E,I,O, Urca.” Por essa época, conhece Dedé Santana, começam a trabalhar em dupla em vários humorísticos, com Dedé se consolidando no papel de “escada” e Renato interpretando o personagem Didi.
A primeira grande chance, no entanto, viria em 66, na TV Excelsior. Os diretores da emissora encomendaram a Wilton Franco uma nova atração a fim de capitalizar a imensa fama de Wanderley Cardoso, no auge como um dos grandes galãs da Jovem Guarda. Inspirado nos programas americanos do gênero, que misturavam humor e musical, Franco cria uma estrutura que permitisse o suporte para o brilho de Wanderley. O experiente showman Ivon Cury  entra para “segurar” os textos, o astro do Telecatch Ted Boy Marino para turbinar as cenas de ação e Renato Aragão para a parte cômica. O programa foi batizado como “Os Adoráveis Trapalhões”. Estava formada a primeira encarnação do grupo.
Apesar do sucesso, as dificuldades da Excelsior levariam ao fim do programa. Renato retoma a parceria com Dedé, ambos passando por nova época de vacas magras, como no início de suas carreiras no canal 06 do Rio. Em mais um episódio que evidencia a importância da figura de  Manoel de Nóbrega para tantos artistas, a dupla consegue entrar para o elenco da “Praça da Alegria”, por volta de 1970 e, introduzindo no velho humorístico a forma diferente do humor físico, não baseado em contar piadas e sim em encená-las, voltam a sentir o gosto do sucesso.
Graças ao desempenho na Praça, a direção da Record cria um programa próprio para os dois , Os Insociáveis, nome instituído por Paulo Machado de Carvalho e detestado por Renato, que queria desde então retomar o nome Trapalhões, lançado na Excelsior e que também já vinha sendo usado na carreira cinematográfica do cearense. Quando o programa ganhou mais destaque e maior duração, surge a necessidade de dar um reforço na equipe. Segundo Juliano Barreto, a ideia de incorporar um ator negro à equipe, partiu do próprio Renato, inspirado pelo sucesso de Bill Cosby na TV americana. A primeira opção seria Tião Macalé, que acabou sendo descartado por ter dificuldades com textos e pouca disciplina (o que não impediu que o cômico fosse imortalizado, assim como Roberto Guilherme, como uma espécie de trapalhão honorário). A segunda opção foi Mussum, pesando a seu favor além do talento natural para fazer rir, já testado na Escolinha e no “Bairro Feliz” e a sua excelente relação com Dedé que já o conhecia do Teatro de Revista. Inclusive foi Dedé quem fez pessoalmente a proposta a Mussum para entrar na trupe. Ao longo dos anos, eles seriam os maiores amigos dentro do grupo (ao contrário do imaginário popular eu provavelmente dava essa condição à dupla Didi- Dedé) , tendo sido inclusive vizinhos no mesmo condomínio em Jacarépagua.
Em 74, o grupo vai para Tupi e, com a entrada de Mauro Gonçalves e seu personagem Zacarias, e adoção definitiva do nome Os Trapalhões, tanto para o grupo, como para o programa, a formação definitiva foi cristalizada.
O livro explora a partir daí a fase de sucesso vertiginoso que se aceleraria com a ida para a Globo, em 77, e a cada vez maior devoção de Renato ao cinema. Juliano faz um trabalho amplo o suficiente para mostrar a dinâmica de funcionamento do grupo, a  vida profissional dupla de Mussum, que , a despeito de se tornar um ídolo nacional como trapalhão,  só deixaria os Originais do Samba no começo dos anos 80, e as tensões entre Renato Aragão e o restante do grupo, curiosamente acirradas durante as difíceis filmagens de “Os Saltimbancos Trapalhões”, praticamente a gota d´água para a separação, que encerraria a fase de ouro do quarteto (77-82).
Por sinal, “Mussum Forevis” esclarece muitos aspectos desse controverso episódio em que Mussum, Dedé e Zacarias, fundam a própria produtora e fazem o filme “Atrapalhando a Swat” sem Renato (detentor do nome Trapalhões) que por sua vez segue sozinho o programa na Globo (os outros três permanecem na emissora, mas no humorístico “A Festa é Nossa”) e lançou “O Trapalhão na Arca de Noé”, sem os companheiros.
Uma curiosidade é que a volta acabou sendo arquitetada por Beto Carreiro, já então um importante parceiro comercial do grupo (era ele quem arrumava os merchandisings que enxurravam o programa e ajudavam a financiar os filmes), que marcou um jantar em Copacabana com cada um deles, sem o conhecimento dos demais. Quando todos chegaram, rolaram lágrimas e abraços e o grupo foi retomado.
A saga de Mussum segue sendo narrada com detalhes saborosos, sobretudo com aspectos até aqui pouco conhecidos da vida particular do artista, cuja a morte, em 94, acabou sendo o estopim para o fim dos Trapalhões, já abalados pelo falecimento de Zacarias, em 1990.
Antônio Carlos Bernardo Gomes segue como ícone do humor, sobretudo nesses tempos de comunicação digital. Os velhos vídeos do programa no youtube, eternizando os bordões e trejeitos do velho trapalhão, são o mote para a criação infinita de memês que inundam as redes sociais, ampliando o número de fãs do “Muça” para muito além daqueles que tiveram o privilégio de acompanhar a sua carreira in loco. A obra de Juliano Barreto faz justiça a esse fenômeno. Duvidis ?


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Sobrevivendo às pedras que rolam




Cotação : 2 estrelas

O axioma é famoso : Em uma hipótese de fim do mundo em função de uma hecatombe nuclear restariam as baratas e...Keith Richards.
“Vida” (Editora Globo, 2010) é o best seller que, em forma de depoimento, relata, com tintas cinematográficas, a trajetória do guitarrista e , considerando-se Mick Jagger como o cérebro,  a autêntica alma dos Rolling Stones, ainda, a maior banda do mundo em atividade.
À primeira vista, uma autobiografia de Richards esbarra em uma questão crucial : sendo notório o seu passado junk ao longo de praticamente três décadas de abusos das mais variadas substâncias, seria temerário confiar nas abaladas memórias do compositor inglês. Não por acaso, em vários momentos o autor recorre à transcrição integral de trechos de outros livros ou entrevistas realizadas com terceiros especialmente para o livro. A tática é acertada.
Keith, sintomaticamente, abre os trabalhos narrando um episódio ocorrido durante a turnê americana de 1975, e que ilustra à perfeição o seu estado de espírito na maior parte daqueles anos : A passagem por (mais) uma batida policial quando viajava juntamente com Ron Wood em um carro recheado dos seus famosos “remedinhos”. O caso acrescentaria um registro à já longa ficha do músico, uma das figuras mais visadas do show business de então.
Em pouco mais de 600 páginas, o Rolling Stone faz um inventário interessante, que remonta ao período em que a banda era apenas um ajuntamento de jovens ingleses brancos almejando fazer o som dos negros americanos. Richards fornece o seu ponto de vista para marcos históricos do quinteto, como a lenta escalada nas paradas, sobretudo as dos Estados Unidos (ao contrário dos Beatles, os Stones exploraram a América quando ainda não eram grandes nomes por lá, sendo inclusive figurinhas fáceis nas chamadas “caravanas” de atrações coletivas); o despertar do talento para a composição em dupla com Jagger, pressionados por Andrew Loog Oldham em uma tentativa de reproduzir o fenômeno Lennon-McCartney; o deslocamento de poder na banda que culminaria com o isolamento e a demissão de Brian Jones e, talvez o mais importante, os bastidores da criação de discos seminais como os da fase Mick Taylor (1969-1974).
Como o previsto, embora transpareça honestidade na maior parte dos relatos, Keith faz pouca força para desfazer boatos célebres que até hoje estão associados aos Stones, destaque aqui para a inacreditável história de sua total troca de sangue como tratamento extremo para se livrar da heroína, vício vencido em 1978, após a detenção em Toronto que quase lhe custou prisão perpétua e o consequente fim da banda. Embora  negue esse tratamento de choque, o leitor sai pouco convicto se a história é inteiramente falsa. Faz parte da mística.
Por sinal, esse “resgate” de Keith Richards marcaria uma nova fase para os Stones, onde o guitarrista se manteria sóbrio o suficiente para voltar a interferir ativamente nos destinos do grupo, o que provocaria a cisão com Mick Jagger que , fiel a seu estilo de se manter “antenado” a todo custo, tendia a abraçar qualquer moda musical que aparecesse, notadamente as que pululavam nas elegantes boates do jet set internacional, ambiente que o vocalista passaria a frequentar com desenvoltura. Os discos a partir de Some Girls (1978) até Dirty Work (1986) estariam recheados desse tipo de “atualização” do som da banda. Keith era radicalmente contra.
As diferenças se acentuaram ainda mais quando, siderado pelo sucesso de Michael Jackson, Jagger resolveu “pegar carona’ em uma negociação de contrato com a CBS para viabilizar sua sonhada carreira solo. Os ânimos se exaltaram quando, ao fim de Dirty Work, Mick se negou a excursionar com os Stones partindo para uma tour de divulgação de seu próprio álbum. O fim da banda ficou novamente por um fio.
Embora tudo esteja mais ou menos no lugar desde 89, quando apararam as arestas e voltaram ao velho esquema, dessa vez turbinadas por turnês gigantescas, que inclusive os trouxeram pela primeira vez ao Brasil, em janeiro de 1995, fica claro que os Stones hoje são muito mais uma empresa que explora um imenso portfólio musical do que exatamente um grupo. Até mesmo na questão de forjar uma imagem, pois mesmo Richards embora já há mais de 30 anos restritos aos cigarros (convencionais ou não) e aos drinques, ainda pousa de junk incorrigível, como já foi um dia.
Em resumo, “Vida”  é um testemunho de alguém que esteve no olho do furacão e voltou para contar a história. Chega a ser curioso que durante boa parte da década de 70, as publicações musicais divulgassem anualmente uma espécie de bolsa de apostas sobre os astros que provavelmente não emplacariam vivos o ano seguinte. Keith Richards frequentemente encabeçava a lista.  Como se sabe, as pedras seguem rolando e não há sinais de limo.


quarta-feira, 12 de março de 2014

A Lucidez dos alienados e a loucura dos sãos.



Cotação : 4 estrelas

A cidade de Barbacena pode ser lembrada como a sede da Escola Peparatória de Cadetes do Ar (Epcar), colégio onde a Aeronáutica prepara seus futuros oficiais. Também aparece nas enciclopédias como cidade natal de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, um dos políticos mais importantes da história do Brasil, com atuação destacada na Revolução de 30. Mas, a grande fama do município mineiro vem mesmo de sua acidentada relação com os tempos mais sombrios da psiquiatria. Era lá que ficava a Colônia, um imenso conjunto de instituições dedicadas à saúde mental, mas que na prática eram câmaras dos horrores, que reproduziam ferozmente os procedimentos medievais que marcaram esse ramo da medicina até bem recentemente. Trazer à tona os detalhes dessa triste história, foi o que motivou a jornalista Daniela Arbex a escrever “O Holocausto Brasileiro” (Geração Editorial, 2013).

Projeto nascido de uma série de reportagens publicadas na “Tribuna de Minas”, jornal de Juiz de fora, o livro estima o óbito diário de 16 pacientes em pelo menos 11 anos de funcionamento da instituição (1969-1980), o que justificaria o título comparando a tragédia mineira ao genocídio de judeus durante a Segunda Guerra.
Marcada por anos de procedimentos desumanizados, o tratamento psiquiátrico praticado na colônia (a bem da verdade não só lá) reduzia qualquer elemento de identificação da condição humana em seus internos. Os pacientes viviam vagando pelos pátios, em sua grande maioria nus, prisioneiros de seus delírios e obsessões escatológicas. Não era incomum que muitos matassem a sede com a água de esgoto que corria livremente pelos pátios. Outros, frequentemente eram flagrados ingerindo excrementos (os próprios e dos outros), inclusive mulheres grávidas, que, em uma demonstração algo distorcida do instinto materno, esfregavam fezes em suas barrigas  na intenção de evitar a aproximação dos funcionários, pois julgavam que eles estariam ali para roubar os seus filhos.
A longa exposição dos cruéis relatos que aniquilaram histórias pessoais, não só de enfermos como também de pessoas supostamente saudáveis e que eram internadas em Barbacena por interesses vis (há casos de mulheres violentadas fazendeiros, idosos vítimas de golpes, etc), por vezes fornecem uma aura sensacionalista à empreitada, aliado a isso, soa estranho que , embora diversos funcionários e médicos condenassem aquele cenário, o “sistema”, em sua lógica implacável e impessoal, seguia triturando vidas em suas engrenagens. É claro que à distância e sem entrar mais a fundo no contexto da situação, parece fácil julgar, mas teria sido interessante que o viés investigativo da obra explorasse um pouco mais as causas e responsáveis por tantas atrocidades. Afinal, o “sistema”, no fundo é sustentado por pessoas e atitudes individuais.
Apesar dessa ressalva, o saldo é indiscutivelmente positivo. “O Holocausto Brasileiro” colocou no mapa a realidade dura da psiquiatria pré movimento antimanicomial e embora estejamos ainda longe de garantir um atendimento universalmente humanizado aos pacientes de distúrbios mentais (sobretudo aos mais graves), a crescente conscientização dos profissionais de saúde e da sociedade em geral, tornam pouco provável a recorrência dos fatos lamentáveis narrados por Daniela Arbex.   Parafraseando o célebre slogan de uma famosa série de TV, fatos esses que nos levam a crer que muitas vezes a insanidade está lá fora.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

"Se você tiver de morrer, é melhor morrer no Times."



Cotação : 4 estrelas

A frase acima, de autoria de A.M.Rosenthal, resume a importância da seção de obituário em um dos maiores veículos da mídia impressa mundial, o New York Times.
A editoria, vista durante muitos anos como uma espécie de deserto do bom jornalismo, para onde alguns poucos condenados eram enviados a fim de cumprir suas penas, ganhou relevância à medida que passou não só a se ocupar de figurões das artes ou da política, e se debruçou sobre a vida de pessoas comuns que, em algum momento , fizeram coisas incomuns. Isso tudo embalado por um texto salpicado dos requintes do "jornalismo literário", essa entidade difícil de classificar, mas fácil de reconhecer em qualquer texto que fuja da camisa de força do lead e incorpore os elementos que fazem da palavra escrita um raro prazer. "O livro das Vidas", organizado por Matinas Suzuki Jr, está repleto deles.
É claro que a variedade de autores e personagens acaba por dar uma certa irregularidade ao conjunto da obra. Alguns podem não ser tão interessantes aos olhos do leitor brasileiro. Por outro lado, há uma penca de figuras que despertariam curiosidade em qualquer parte do mundo: Edward Lowe, que acidentalmente inventou o Kitty Litter e deu novo rumo à domesticação de gatos; Stanley Adelman, notório mecânico de máquinas de escrever, que salvou o instrumento de trabalho de dezenas de escritores famosos; Albert P. Blaustein, o advogado judeu que ajudou a formatar as constituições de um sem número de países; Herbert Huncke, ladrão, viciado e garoto de programa que inspirou muitos artistas da geração beatnik; Douglas Corrigan, o tresloucado aviador que ao zarpar da Costa Leste Americana rumo à Los Angeles, "errou" a rota e foi pousar na Irlanda...

Todas essas trajetórias acabaram capturadas pela sensibilidade e talento dos melhores jornalistas a serviço do NYT. O livro pode ser entendido como uma sincera homenagem a esses operários da escrita, embora, há um claro destaque para um deles: Robert McG. Thomas Jr, autor da maioria dos textos do livro e, ironicamente, tema do último obituário selecionado para "O Livro das Vidas". Felizmente a palavra escrita permanece para muito além da morte.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

O Diretor em close.


Cotação : 5 estrelas

Se compararmos o processo de criação da teledramaturgia, em especial de seu produto mais típico, as novelas, com o cinema, a figura do diretor tende a ter uma porção consideravelmente menor de reconhecimento em relação a autores e atores. Experimente lembrar de primeira, sem recorrer a qualquer fonte de consulta, os atores principais de uma novela icônica, como Vale Tudo, por exemplo ? É provável que você se lembre de alguns (Antônio Fagundes, Beatriz Segall) e , além deles, do autor, Gilberto Braga. Pouquíssimos devem ter memória de que aquele grande sucesso foi dirigido por Dennis Carvalho.
A lógica muda radicalmente quando falamos de cinema. Em geral, e por mais que disponha de atuações destacadas e a despeito do roteiro, um filme é em última instância uma obra de diretor. Nesse aspecto, pode-se dizer que Walter Avancini foi talvez o mais influente ( e cinematográfico) realizador da teledramaturgia brasileira. Em todos os trabalhos em que esteve envolvido, deixou de forma indelével a sua marca.
Em “O Último Artesão” ( Gryphus, 2005), a atriz e jornalista Ângela Brito coleta 52 depoimentos de atores e técnicos que trabalharam com Avancini em sua longa trajetória televisiva, composta por passagens pela Excelsior, Tupi, Bandeirantes, SBT, Manchete e Globo.
Há alguns anos, ao rememorar o começo de sua carreira, Regina Duarte afirmava que a sua formação de atriz, basicamente desenvolvida na televisão, foi inteiramente moldada pelo diretor com quem trabalhou em nove oportunidades, incluindo aí a mais emblemática telenovela estrelada pela “namoradinha do Brasil”, Selva de Pedra. O depoimento de Regina, uma das entrevistadas no livro, dá uma tônica do que seria uma impressão quase unânime em relação à Avancini : alguém de inegável valor, capaz de formar atores, mas ao mesmo tempo, um diretor de métodos extremamente duros. Capaz de melindrar os mais sensíveis e exasperar a equipe , levando todos ao limite. Tudo pela verdade de uma cena.
Não era incomum que ele interrompesse uma gravação, que a seu critério não corria a contento, e provocasse deliberadamente os atores envolvidos, há relatos inclusive de discussões pesadas que quase chegavam à agressão, só para deixá-los raivosos. Quando o trabalho era retomado, o desempenho, impulsionando pelo estado emocional alterado, geralmente era de qualidade superior. Tática de guerra a serviço da arte.
Chega a ser curioso como os depoimentos são coincidentes sobre determinadas características obsessivas de Avancini : atores não podiam ensaiar com o texto à mão, que devia ter sido estudado com antecedência; jamais sentar ou descansar na mobília ou demais componentes de cena; não eram admitidas conversas ou brincadeiras entre a equipe técnica e os atores, estes últimos deveriam estar em atmosfera plena de concentração. No caso de violação dessas ou outras regras, o lado carrasco aparecia : broncas homéricas distribuídas democraticamente, desde o funcionário da limpeza até a estrela consagrada.
Mesmo com essa aura de tensão e cobranças permanentes, o saldo da leitura de “O último Artesão” é o de que a oportunidade de trabalhar com Avancini foi um divisor de águas na carreira dos profissionais entrevistados para a obra.
Certa vez, Janete Clair afirmou que a vida de qualquer pessoa daria uma novela. Walter Avancini foi além : fez da novela a sua vida.


sábado, 25 de janeiro de 2014

A Espiral do Tempo


Cotação : 5 estrelas


Viagens no tempo são um clichê da ficção. Desde a famosa série “Cavalo de Tróia”, de J.J Benítez, passando pela sequência cinematográfica que fez a glória de Michael J. Fox, voltar ao passado, ou avançar para o futuro, e modificar os fatos é ideia recorrente entre diversos criadores. “Novembro de 63”, uma das mais recentes empreitadas de Stephen King, parte desse mote para romantizar sobre um dos episódios mais marcantes da história americana e mundial, cujo cinquentenário no ano passado, originou um sem número de iniciativas : o brutal assassinato de Kennedy, no Texas, em 1963.
Embora muitos torçam o nariz à simples menção de seu nome, o mestre do terror e da fantasia, responsável por títulos de expressão como “Carrie, a Estranha”, “O iluminado”, “Cristine” e “ À Espera de um Milagre”, é muito mais do que um prolífico autor de best sellers. Sua influência pode ser medida não só pela quantidade considerável de obras cinematográficas e séries televisivas derivadas de sua obra, como também pelo aparecimento de uma substancial geração de autores que, mesmo que inconscientemente, beberam em suas fontes. Não seria totalmente absurdo identificar nos escritos de J.K Rowling (a mãe de Harry Potter), George R.R Martin (o pai de Game of Trones, embora ele seja da mesma geração de King), Stephenie Meyer (Crepúsculo) e até nos dos brasileiros André Vianco e Eduardo Spohr, traços inconfundíveis do DNA do autor americano, em maior ou menor grau.
O livro em si, publicado no Brasil pela Suma das Letras (selo da Objetiva) em edição caprichada de volumosas 728 páginas, é um primor dentro daquilo que se propõe : Entretenimento genuíno, altamente legível, com doses bem equilibradas de suspense , emoção e romance, como convêm à um produto da chamada “cultura de massa”. E , acreditem, isso está longe de ser uma crítica negativa.
O personagem principal é o professor Jake Epping, que logo no começo da trama, se comove com a redação de um aluno já idoso de sua turma de alfabetização de adultos, o faxineiro Harry Dunning. Em seu texto, Harry conta a tragédia que acometeu sua família há mais de 50 anos, quando seu pai, embriagado, promoveu uma chacina, matando sua mãe e seus irmãos. Jake fantasia sobre voltar no tempo, evitar o assassinato e moldar um novo destino para Harry. Essa fantasia se concretiza quando o professor é convocado por Al, o dono da lanchonete da cidade, a conhecer a “toca do coelho”, uma fenda temporal escondida nos fundos da despensa do estabelecimento, e que permitiria uma volta ao ano de 1958.
Al , que já tinha utilizado a fenda várias vezes, faz então uma proposta a Jake : entrar na fenda e , durante cinco anos, viver no passado até completar a grande intervenção que ele não teve tempo nem saúde para completar : evitar o assassinato do Presidente.
A partir daí, Jake passa a viver uma existência dupla, como um simples professor de secundário dos míticos anos 50, onde inesperadamente encontra sua cara metade , Sadie, que terá importância capital no enredo, e como uma espécie de “exterminador do futuro”, monitorando cada passo do assassino, Lee Oswald, visando interceptá-lo o quanto antes.
A grande maestria de King é transformar uma história já conhecida, em uma trama de final imprevisível, com cada capítulo construído numa crescente de tensão e suspense, alternando com o drama do romance “quase” impossível com Sadie. Certamente alguns leitores mais sensíveis devem ter torcido para que Jake desistisse de sua missão...
Acrescido a isso, há o imponderável atuando o tempo todo, pois o passado aparece como um obstáculo aos objetivos de Jake, resistindo com todas as forças à mudança brusca que está para acontecer, como que alertando das terríveis alterações advindas do “efeito borboleta”.
A sensação é que “Novembro de 63” é um gigantesco apanhado das inegáveis qualidades de um autor que já vendeu mais de 350 milhões de cópias, além de ser o nono mais traduzido no mundo. Todos os truques dos grandes romancistas estão lá, inclusive um final carregado de lirismo, fazendo da obra fortíssima candidata à uma adaptação cinematográfica de impacto.
Pode ser que, em nossos dias, Stephen King não tenha assento à mesa da grande literatura americana, composta de cânones como Hemingway, Updike, Fitzgerald, Steinbeck, Edgar Allan Poe; mas ouso afirmar que o futuro não será indiferente à sua valiosa contribuição de ficcionista. Talvez, não seja preciso nem recorrer à toca do coelho para comprovar isso.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Os Impagáveis personagens de Ipanema.



Cotação : 5 estrelas

Antes de escrever sobre o livro propriamente dito, não posso deixar de lembrar da ocasião curiosa em que o adquiri. No dia 6 de setembro de 2001, uma quinta feira, por volta das 6 da tarde, eu estava caminhando ente as barraquinhas da tradicional feira do livro, no Largo da Carioca, centro do Rio de Janeiro, fazendo hora para a minha aula na pós graduação. Do outro lado da feira, estava o Ruy, acompanhado de sua esposa, a também escritora Heloísa Seixas, folheando alguns volumes. Deixando a timidez de lado, fui abordá-lo dizendo que era seu fã e aproveitei para comprar um livro ali mesmo para que pudesse levar o exemplar autografado. Ruy pacientemente esperou que eu fizesse a compra e ,sempre muito gentil, autografou com uma caprichada dedicatória. Foi o meu primeiro encontro com o escritor.
O livro em questão era justamente "Ela é carioca". Uma coletânea com alguns dos personagens mais icônicos de Ipanema, anônimos ou não. Uma verdadeira aula sobre a cultura da cidade mais linda do mundo, sempre com a escrita fascinante e bem humorada do autor.
Só para ter uma idéia dos achados da obra, segue um breve resumo de um dos verbetes mais interessantes : Hugo Bidet.
Hugo Bidet era um artista plástico, escritor e figuraça de Ipanema. O apelido, que virou sobrenome, nasceu de um improvável episódio : Ao oferecer uma feijoada em seu minúsculo apartamento, na falta de panelas e recipientes adequados para colocar de "molho" os salgados, Hugo recorreu à nobre peça do banheiro do imóvel.
Amigo de Leila Diniz e outras figuras típcas do bairro( muitas também retratadas no livro), em meio à uma crise depressiva Hugo resolveu cometer suicídio. Pegou um revólver, colocou o cano na boca e atirou. Surpreendentemente não morreu !! E, arrependido logo depois, ainda desceu à entrada do prédio para procurar ajuda.

Ipanema é única. Ruy Castro também.