Cotação : 5 estrelas
Começo essa resenha em um domingo,
19/10/2014, 19:00. Para muitos isso não significa muita coisa, mas, para
aqueles que foram crianças entre o fim dos anos 70 e por toda a década de 80, o
dia e o horário, associadas à música tema, são referencias inequívocas : Era o
dia e a hora do programa dos Trapalhões, na Globo.
O
grupo formado em 66 na Excelsior, mas, após algumas encarnações, consolidado em
74 na TV Tupi, era a tradução brasileira do consagrado humor circense pastelão,
cujo o paralelo internacional mais famoso talvez sejam os Três Patetas.
Cristalizado como quarteto, o grupo tinha em cada um de seus comediantes papeis
bem definidos e que funcionavam à perfeição dentro do time de comédia a que se
dedicavam. Para muitos, apesar de momentos solos e coletivos brilhantes, o
trapalhão mais engraçado era mesmo Mussum.
“Mussum forevis : Samba, Mé e
Trapalhões” (Leya, 2014) é a esperada biografia do humorista que, apesar dos 20
anos de sua morte, segue mais vivo do que nunca sobretudo pela notável apropriação
de seus bordões e imagem, eternizados em vídeos compartilhados e nas famosas
“memes” compartilhadas de forma viral nas redes sociais. Boa parte dos
criadores que mantêm esse culto ao velho trapalhão, não teve idade suficiente
para acompanhar in loco a carreira de Antônio Carlos e nem faz ideia de que ele
na verdade era muito mais que um notável comediante. É em grande parte para
esse público que o jornalista Juliano Barreto escreveu o livro.
O autor desvenda as origens humildes de
Mussum, que, embora mais tarde associado de forma imediata à Mangueira, nasceu
no Morro da Cachoeirinha, no Engenho Novo, também na Zona Norte do Rio. Filho
de uma lavadeira analfabeta, nunca conheceu o pai e viveu as dificuldades
inerentes à sua condição nos difíceis e preconceituosos anos 40 e 50. Apesar
disso, seguiu regularmente nos estudos, dentro das possibilidades dos meninos
de sua classe social, conseguindo o diploma de um curso técnico de mecânica,
passaporte para um engajamento na carreira de militar, quando se alistou na
Aeronáutica,
Ao mesmo tempo em que era um militar
disciplinado, Mussum, nas horas de folga, começou a intensificar as suas
incursões no mundo do samba, universo no qual gravitava desde de adolescente. Observando
e frequentando inúmeras rodas de samba com amigos, Mussum se transformou num
exímio sambista, tendo inclusive, utilizando os seus conhecimentos de mecânica,
praticamente inventado um instrumento : o reco- reco.
O convívio mais intenso com os bambas do
samba carioca, rendeu um dia um convite para integrar um grande grupo de
passistas e ritmistas que faria audição para o mítico Carlos Machado que,
apesar de não estar mais em seus áureos dias, seguia montando seus espetáculos
musicais. O grupo foi aprovado e Mussum entrou para o mundo do showbizz,
A partir daí , trabalhando em grupo nas
shows do veterano produtor, embora ainda na vida dupla de militar, Antônio
Carlos começou não só a melhora de vida, como também a ganhar experiência de
palco, desenvolvendo brincadeiras e coreografias com os colegas, que garantiam
o espaço do grupo e chamava a atenção de outros artistas que passariam também a
contar com os músicos em suas apresentações.
Por essa época, ele estrearia na
televisão e, de quebra, ganharia o apelido que o tornou famoso. Em novembro de
1965, a Globo ainda era um pequena emissora carioca que montava sua grade de
programação para fazer gente às grandes com a Tupi, a Excelsior e a TV Rio.
Maurício Shermann, então já um experiente diretor, criou um programa
humorístico chamado de “Bairro Feliz”. Grande Otelo era uma das estrelas da
atração e teria um bloco inteiro só para si, no qual fazia um compositor que
tentava em vão emplacar seus fracos sambas na escola do coração. Para compor o
quadro, era necessário que houvesse a reprodução mínima da estrutura de uma
escola de samba. Otelo era muito amigo de Carlos Machado e indicou o grupo, já
então denominado Originais do Samba, que tocava em seus espetáculos.
O conjunto era coadjuvante do quadro
que, além de Otelo tinha também Milton Gonçalves como o diretor da tal escola
de samba. Um dia, um dos atores escalados para o esquete faltou. Não havia
tempo de arrumar outro e o jeito foi apelar para um dos rapazes do conjunto.
Como Antônio Carlos era o mais falante, foi o escolhido. Resistiu até a última
hora, mas Shermann apelou e ele, a contragosto, acabou aceitando. O programa
era ao vivo, como quase tudo que se fazia na TV brasileira da época e , Otelo,
invariavelmente não ensaiava, chegando em cima da hora do programa e
frequentemente já calibrado. Foi assim naquela vez. Por não ter o texto
decorado, o ator resolveu entrar em cena com um livro, com as suas falas
cuidadosamente colocadas dentro.
O programa começou. Na hora do quadro,
Otelo estranhou ter que contracenar com alguém do grupo, não sabia que o ator
escalado havia faltado, mas a coisa foi se desenrolando. No meio da cena,
Milton Gonçalves entra com o resto dos Originais em uma frenética batucada.
Otelo se assusta e deixa o livro cair com as falas se espalhando pelo palco.
Enquanto tenta catar as falas, a plateia e o resto do elenco vem abaixo de
tantas risadas. Já irritado, Otelo encara Antônio Carlos e dispara : “Tá rindo
de quê o...Muçum !!!”. O programa praticamente acabou. Ninguém se aguentou de
tanto gargalhar (Muçum, grafado com ç mesmo, é um peixe escuro). Nascia um
ícone.
Após o cancelamento de “Bairro Feliz”, o
grupo seguiu de forma ainda mais intensa a carreira, tocando nos célebres
programas e festivais musicais da TV Record. Os Originais do Samba foram
rapidamente alçados ao posto de um dos grandes nomes do gênero no país. Assinam
com a RCA e desandam a fazer shows. Mesmo com a vida de músico de vento em
polpa, Mussum ainda teria pelo menos mais uma participação cômica de impacto na
TV. Chico Anysio, ao remontar a clássica Escolinha do Professor Raimundo na
Tupi, em 1968, buscava o aproveitamento de novos alunos. Já conhecia Mussum da
experiência do “Bairro Feliz” e ao assistí-lo em um espetáculo do já decadente
teatro de revista, não teve dúvidas, o chamou para trabalhar na versão
televisiva do velho quadro do rádio. Foi lá, por orientação de Chico, que
Mussum adotou a particular pronúncia que seria a sua marca registrada nas
telas. O personagem estava pronto.
O encontro definitivo que colocaria o
personagem na história, se daria pouco depois, ainda no começo dos anos 70.
Em 1960, o jovem advogado Renato Aragão
fez um teste para trabalhar na então nascente TV Ceará. Sendo um fanático por
Oscarito, Renato sonhava em ser como seu ídolo, um mito do cinema, mas a TV,
ainda uma novidade para a maioria dos brasileiros, poderia ser um atalho interessante.
Sem qualquer contato com o mundo artístico antes, ele foi aprovado e passou a
bater ponto como ator e redator de humor na estação cearense.
Em 1964, após grande sucesso em sua
terra natal, Aragão desembarca no Rio para trabalhar na mítica TV Tupi, no
programa “A,E,I,O, Urca.” Por essa época, conhece Dedé Santana, começam a
trabalhar em dupla em vários humorísticos, com Dedé se consolidando no papel de
“escada” e Renato interpretando o personagem Didi.
A primeira grande chance, no entanto,
viria em 66, na TV Excelsior. Os diretores da emissora encomendaram a Wilton
Franco uma nova atração a fim de capitalizar a imensa fama de Wanderley Cardoso,
no auge como um dos grandes galãs da Jovem Guarda. Inspirado nos programas
americanos do gênero, que misturavam humor e musical, Franco cria uma estrutura
que permitisse o suporte para o brilho de Wanderley. O experiente showman Ivon
Cury entra para “segurar” os textos, o
astro do Telecatch Ted Boy Marino para turbinar as cenas de ação e Renato Aragão
para a parte cômica. O programa foi batizado como “Os Adoráveis Trapalhões”.
Estava formada a primeira encarnação do grupo.
Apesar do sucesso, as dificuldades da
Excelsior levariam ao fim do programa. Renato retoma a parceria com Dedé, ambos
passando por nova época de vacas magras, como no início de suas carreiras no
canal 06 do Rio. Em mais um episódio que evidencia a importância da figura de Manoel de Nóbrega para tantos artistas, a
dupla consegue entrar para o elenco da “Praça da Alegria”, por volta de 1970 e,
introduzindo no velho humorístico a forma diferente do humor físico, não
baseado em contar piadas e sim em encená-las, voltam a sentir o gosto do
sucesso.
Graças ao desempenho na Praça, a direção
da Record cria um programa próprio para os dois , Os Insociáveis, nome
instituído por Paulo Machado de Carvalho e detestado por Renato, que queria
desde então retomar o nome Trapalhões, lançado na Excelsior e que também já
vinha sendo usado na carreira cinematográfica do cearense. Quando o programa
ganhou mais destaque e maior duração, surge a necessidade de dar um reforço na
equipe. Segundo Juliano Barreto, a ideia de incorporar um ator negro à equipe,
partiu do próprio Renato, inspirado pelo sucesso de Bill Cosby na TV americana.
A primeira opção seria Tião Macalé, que acabou sendo descartado por ter
dificuldades com textos e pouca disciplina (o que não impediu que o cômico fosse
imortalizado, assim como Roberto Guilherme, como uma espécie de trapalhão honorário).
A segunda opção foi Mussum, pesando a seu favor além do talento natural para
fazer rir, já testado na Escolinha e no “Bairro Feliz” e a sua excelente
relação com Dedé que já o conhecia do Teatro de Revista. Inclusive foi Dedé
quem fez pessoalmente a proposta a Mussum para entrar na trupe. Ao longo dos
anos, eles seriam os maiores amigos dentro do grupo (ao contrário do imaginário
popular eu provavelmente dava essa condição à dupla Didi- Dedé) , tendo sido
inclusive vizinhos no mesmo condomínio em Jacarépagua.
Em 74, o grupo vai para Tupi e, com a entrada
de Mauro Gonçalves e seu personagem Zacarias, e adoção definitiva do nome Os
Trapalhões, tanto para o grupo, como para o programa, a formação definitiva foi
cristalizada.
O livro explora a partir daí a fase de
sucesso vertiginoso que se aceleraria com a ida para a Globo, em 77, e a cada
vez maior devoção de Renato ao cinema. Juliano faz um trabalho amplo o
suficiente para mostrar a dinâmica de funcionamento do grupo, a vida profissional dupla de Mussum, que , a
despeito de se tornar um ídolo nacional como trapalhão, só deixaria os Originais do Samba no começo
dos anos 80, e as tensões entre Renato Aragão e o restante do grupo,
curiosamente acirradas durante as difíceis filmagens de “Os Saltimbancos
Trapalhões”, praticamente a gota d´água para a separação, que encerraria a fase
de ouro do quarteto (77-82).
Por sinal, “Mussum Forevis” esclarece
muitos aspectos desse controverso episódio em que Mussum, Dedé e Zacarias,
fundam a própria produtora e fazem o filme “Atrapalhando a Swat” sem Renato (detentor
do nome Trapalhões) que por sua vez segue sozinho o programa na Globo (os
outros três permanecem na emissora, mas no humorístico “A Festa é Nossa”) e
lançou “O Trapalhão na Arca de Noé”, sem os companheiros.
Uma curiosidade é que a volta acabou
sendo arquitetada por Beto Carreiro, já então um importante parceiro comercial
do grupo (era ele quem arrumava os merchandisings que enxurravam o programa e
ajudavam a financiar os filmes), que marcou um jantar em Copacabana com cada um
deles, sem o conhecimento dos demais. Quando todos chegaram, rolaram lágrimas e
abraços e o grupo foi retomado.
A saga de Mussum segue sendo narrada com
detalhes saborosos, sobretudo com aspectos até aqui pouco conhecidos da vida particular
do artista, cuja a morte, em 94, acabou sendo o estopim para o fim dos Trapalhões,
já abalados pelo falecimento de Zacarias, em 1990.
Antônio Carlos Bernardo Gomes segue como
ícone do humor, sobretudo nesses tempos de comunicação digital. Os velhos vídeos
do programa no youtube, eternizando os bordões e trejeitos do velho trapalhão,
são o mote para a criação infinita de memês que inundam as redes sociais,
ampliando o número de fãs do “Muça” para muito além daqueles que tiveram o privilégio
de acompanhar a sua carreira in loco. A obra de Juliano Barreto faz justiça a
esse fenômeno. Duvidis ?